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Rimavera por Ver

Na coluna do mês de setembro, Vera Fróes entoa o cântico de boas-vindas à primavera, uma oração que é, ao mesmo tempo, elegia à vida e alerta aos sinais dos tempos riscados pelo passo humano.

Enquanto o planeta gira na eterna dança de translação ao redor do sol, o hemisfério sul experimenta a magia da primavera, a natureza encontra um jeito de renascer e nos convida a fazer o mesmo.

A primavera é a estação para se cultivar ervas, árvores frutíferas, roçados e nossas próprias virtudes e dons. Espiritualmente, o coração se abre, limpa-se de energias estagnadas. A vida selvagem desabrocha num movimento de renovação e renascimento. Em todas as culturas, é tempo de inspiração na Terra, com a oferta generosa de alimentos – um banquete da deusa a todas as espécies.

É a estação para se experienciar a linguagem visual das flores, a sensação olfativa dos aromas, as delícias do paladar e as maravilhas das visões e mirações. A flor, segundo o filósofo Emanuele Coccia, é a planta desnudada, é a expressão de todo seu passado e a antecipação do seu futuro. Precisamos aprender com o povo-planta, seres inteligentes, sensíveis, que tomam decisões, têm intenções, computam aspectos importantes do ambiente, cooperam e se protegem como família. Resgatar mitos, histórias e o uso das plantas pode ser um caminho para adiar o fim do mundo.

A primavera nos convoca a criar um território de cura, um lugar de pertencimento, de interação, de escuta e percepção, é um refúgio, é tempo não só de plantar, mas de cantar, dançar, tocar maracá e estabelecer alianças entre as espécies, em que os professores são as plantas. Nós pertencemos à Gaia, Gaia pertence ao sistema solar, o sistema solar pertence ao universo, são muitos pertencimentos.

É importante reverenciar o passado porque ele nos dá a existência, o pertencimento honra o lugar de onde nós viemos. Quando os Yanomami afirmam que são parentes do sol, é a convicção sobre de onde vem sua ancestralidade, é o entendimento de que a natureza é extensão da família, os seres não-humanos são criadores da vida no planeta, de rios, florestas, oceanos e montanhas, a quem devemos honrar e proteger.

O planeta ora queima ora inunda e, assim como as flores encontram formas de se adaptar às intempéries, precisamos encontrar maneiras de viver em harmonia com Gaia. As mudanças climáticas sinalizam o que está por vir, as estações se tornam imprevisíveis, os ciclos de chuva já não são mais os mesmos, flores que deveriam nascer em março já florescem em janeiro, o calor e o frio persistem além do esperado.

Nessa sanha de poluição, desmatamento, destruição de biomas e espécies, o Homo sapiens pode ser o próximo da lista e o planeta não sentirá nenhuma falta. A sinfonia da natureza está prestes a se tornar um drama cósmico, e nesse descompasso desafinado, os regenerantes de Gaia – pajés, agroflorestores, jardineiros, quilombolas, povos indígenas, caiçaras e todos os seres de alma sensível – podem fazer a diferença. Uma só andorinha não faz verão, e uma árvore só não faz floresta.

Ao longo da história, a humanidade buscou na natureza as respostas para suas necessidades físicas, emocionais e espirituais e ela, em contínuo sacro ofício, não nos pede nada, apenas o cuidado. A primavera nos inspira a uma mudança de paradigma, a uma nova forma de ser, agir e estar no ecossistema. A tecnologia digital pode muito bem dialogar com a tecnologia vegetal, somos todos diferentes, mas viemos do mesmo DNA cósmico.

Seria oportuno que a humanidade passasse por um processo de destilação, como as ervas na espargeria, cujo princípio “dissolve e coagula”, separa o corpo, a alma e o espírito da planta, purifica, retifica, limpa-os de todas as impurezas e depois reúne o que estava separado, resultando na quintessência, a essência fundamental, o remédio universal, que traz toda informação de cura física e espiritual.

No estudo do xamanismo é no equinócio da primavera que fazemos a semeadura dos projetos e sonhos que desejamos ver florescer no ano seguinte, é nessa conjuntura planetária que internalizamos as sementes do futuro próximo, uma boa dica para um ano auspicioso.

Hoje, cultivar um território de cura é uma estratégia de sobrevivência, de empoderamento da saúde, uma maneira de polinizar práticas sintrópicas, um espaço no qual é possível sentir o cheiro dos ancestrais e perfumar a memória, vibrar na frequência dos ciclos na natureza.

Entre o encantamento e a ciência, podemos viajar na canoa da transformação do povo-planta e nos reconectar com a linguagem perdida, trabalhando na dimensão biomolecular. As plantas conversam pela química e nós podemos conversar por meio do coração. A nossa ancestralidade se ancora na fitoterapia.

As plantas sabem quem as ama e quem as maltrata, elas não têm cérebro, elas são o cérebro. Vamos podar o ego, fazer brotar o broto para surgir o novo. Voemos com as bruxas e borboletas, para sair do casulo, pois quem alcança voos nunca mais quer rastejar.

Viva a primavera!

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