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O que é Tradição?

Na primeira coluna do mês de dezembro, Flávia Berton, integrante da Muda, busca sensivelmente em Krenak, Kopenawa e Nêgo Bispo chaves valiosas para entendermos o sentido profundo do termo: Tradição

Há um momento e um território em que o canto da memória se encontra com outras memórias e outros cantos. E se transforma a partir dos encontros feitos.

Gilberto Gil

A tradição refere-se à transmissão de valores, costumes, crenças, práticas e conhecimento de uma geração para a próxima, criando uma ligação entre o passado, o presente e o futuro.

As tradições podem ser observadas em diversos aspectos da vida, desde rituais religiosos e cerimônias de passagem até festas, festivais e práticas familiares. Elas fornecem uma sensação de continuidade e estabilidade em meio à constante mudança. 

Através das tradições, as pessoas encontram um senso de pertencimento e conexão com suas raízes, suas comunidades e suas histórias.

Ailton Krenak, ao descrever sua linhagem ancestral e a conexão entre o ser indivíduo e ser coletivo, relata sua história e o profundo pertencimento a uma tradição:

O ser Krenak é uma constituição de pessoa muito formada por um sentimento coletivo. O ser Krenak não consegue se constituir sozinho. Para além da experiência de responsabilidade social, responsabilidade com o outro, que é o que constitui cidadania, a experiência de ser para nós implica uma filiação com diferentes potências da vida aqui na Terra. É por isso que o Watu é o nosso avô. O rio Doce, Watu, nós cantamos para ele, nós conversamos com ele e desenvolvemos uma consciência, desde pequeno, que aquele ser é vivo, que ele tem personalidade, ele tem humor.

Davi Kopenawa, em seu memorável livro “A queda do céu, palavras de um xamã yanomami”, reforça a força da tradição oral com as seguintes palavras:

Os brancos se dizem inteligentes. Não o somos menos. Nossos pensamentos se expandem em todas as direções e nossas palavras são antigas e muitas. Elas vêm de nossos antepassados. Porém, não precisamos, como os brancos, de peles de imagens para impedi-las de fugir da nossa mente. Não temos de desenhá-las, como eles fazem com as suas. Nem por isso elas irão desaparecer, pois ficam gravadas dentro de nós. Por isso nossa memória é longa e forte.

Tratar a tradição como combustível para trabalhar o nosso dia a dia é pensar de que maneira podemos viver o hoje levando em consideração a experiência ancestral, para que essas experiências reverberem em nossos descendentes, em nosso futuro.

O quilombola piauiense Nego Bispo, em seu livro “a terra dá, a terra quer”, chama essa fusão de saberes ancestrais de confluência:

Não fizemos os quilombos sozinhos. Para que fizéssemos os quilombos, foi preciso trazer os nossos saberes de África, mas os povos indígenas daqui nos disseram o que lá funcionava de um jeito, aqui funcionava de outro. Nessa confluência de saberes, formamos os quilombos, inventados por povos afroconfluentes, em conversa com povos indígenas.

Inspirada nesses compartilhamentos de saberes, creio que promover ações circulares, respeitar os ciclos naturais e a sabedoria do viver em coletividade, são pilares da tradição, e buscar inspiração na tradição para criar tecnologias sociais que nos comportem atualmente é o grande desafio da sociedade em que vivemos.

Referências para aprofundamento

BISPO DOS SANTOS, Antonio. A terra dá, a terra quer. São Paulo: UBU Editora/PISEAGRAMA. 2023.

KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um Xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

KRENAK, Airton. Caminhos para a cultura do Bem Viver. Rio de Janeiro, Escola Parque. 2020.

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