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O engajamento social como prática da liberdade

Na primeira coluna de 2024, Luiz Felipe Lopes Cunha, da Associação Amanu, tece um belíssimo relato de sua trajetória de 16 anos pelas veredas da educação libertadora. Uma experiência que demarca o impacto transformador do gesto profundo da união.

“Quando o povo se une, as coisas dão certo!” (Meninas de Sinhá)

A reflexão que se segue diz respeito à experiência de vida de um militante na área socioambiental, participante de uma associação de agricultores familiares há 16 anos, educador popular em agroecologia com especialização em Educação de Jovens e Adultos (EJA) que mora em Jaboticatubas, município de Minas Gerais, na zona rural. Em nosso município possuímos uma cultura popular rica e diversificada diretamente vinculada ao bioma cerrado que habitamos, mas os loteamentos irregulares, a especulação imobiliária e a urbanização irracional vêm destruindo as possibilidades de sua manutenção. A característica camponesa do município é forte, com grande extensão rural, diversas famílias agricultoras e diversas comunidades rurais e de origem quilombola. A população urbana é maior do que a rural atualmente e convivemos tanto no urbano quanto no rural com problemas de infraestrutura, saúde, mobilidade, saneamento, e com o aprofundamento da desigualdade social. Boa parte da nossa população está submetida a condições precárias de vida e a centralização das oportunidades nos centros urbanos, e dentre eles na sede, ocasiona a segregação das populações afastadas geograficamente e o êxodo para municípios com centros urbanos que oferecem maiores oportunidades. Como em diversos municípios do Brasil, a população consome muitos medicamentos controlados, principalmente antidepressivos, e a violência contra a mulher, a criança e a população negra é constante. Dentre nossas características, uma me chama a atenção e creio ser característica de nossos tempos em diversos outros lugares: o isolamento das pessoas, a falta de momentos de encontro para aprender, dedicar ou participar de uma atividade que nos tira do cotidiano alienante e nos coloca em contato com os outros e as diversas formas de pensar, falar e existir.

Quando iniciamos os trabalhos da Associação Amanu – Educação, Ecologia e Solidariedade em torno da agroecologia e agricultura familiar nos territórios urbanos e rurais no ano de 2009, evidenciamos algo que marcou profundamente nossa trajetória como educadores populares na EJA e que nos levou ao engajamento em lutas socioambientais. Esse ‘algo’ que nos marca ainda hoje pode ser resumido no mote do texto: Quando o povo se une, as coisas dão certo! Dito de outra forma e já relacionando ao que quero apresentar aqui, quando o povo se encontra e se engaja em algo que revela novos sentidos para a vida, é formado pelos sujeitos daquele coletivo a perspectiva da libertação individual e coletiva. Seja qual for a situação da qual se liberta, subjetiva ou objetiva, a pessoa realiza um movimento revolucionário de libertação. Mas o que é esse movimento? Vou explicar com um exemplo, mas antes quero enunciar o conceito para depois exemplificar. O movimento de libertação é um processo pelo qual pessoas experienciam reflexões que as levam a compreender o mundo e a si mesmas a partir de categorias e conceitos diferentes do que outrora compreendiam, mas tão diferentes que para essas pessoas elas se tornam outras pessoas, agora livres de amarras que as impediam de se movimentar no mundo livremente. Em outras palavras, as pessoas que vivenciam esse movimento de libertação experimentam a ampliação de sua consciência, de sua visão de mundo, de sua compreensão sobre sua própria história. Agora vamos ao exemplo desse movimento de libertação. É muito comum uma pessoa que não terminou o ensino básico – e essa pessoa normalmente vem das classes populares oprimidas, e por isso dizemos na EJA que ela teve seu direito constitucional à educação negado pelo Estado e pela sociedade – acreditar que ela não deu conta de estudar, que ela é responsável pelo seu desempenho escolar, desconsiderando todas as dificuldades e impossibilidades que se apresentam em sua trajetória escolar e que, efetivamente, a impediram de estudar. Normalmente se esquece que vivemos em condições predeterminadas que se não condicionam à vida de cada pessoa, limitam bastante ao ponto de privilegiar uns e prejudicar outros. Essa pessoa, que acredita ser a única responsável pelo seu “fracasso” escolar, normalmente sente uma enorme vergonha em conversar com quem é letrado, como se diz por aí. Tive inúmeros alunos na EJA que trabalhavam na construção civil e que diziam que queriam estudar para olhar para o engenheiro no olho. Pois quando falavam com alguém letrado abaixavam a cabeça. Pois bem, quando uma pessoa com este perfil se engaja num processo de educação onde, além de seu esforço pessoal, encontra uma equipe de educadores acolhedores e capacitados, colegas de escola também engajados em estudar, e um ambiente saudável, aberto para o diálogo, o resultado normalmente é a construção de uma autoimagem mais positiva e da certeza de que não se é inferior a ninguém. Esse sentimento é fundamental para existir diálogo, o sentimento de igualdade, mesmo que necessariamente sejamos diferentes, saber que não existe autoritarismo numa relação abre caminho para o diálogo. Então, quando uma pessoa que se via como inferior passa a ter clareza do seu valor, quando essa pessoa consegue encarar seus medos de cabeça erguida, acredito que ali aconteceu um movimento de libertação. Isso não significa que essa pessoa está livre de tudo que a oprime, mas de algo que a oprimia. O movimento de libertação é contínuo e precisa ser buscado todos os dias. E aqui estou me baseando em uma leitura freireana de minhas experiências no campo da educação formal e popular.

Nesse sentido, sem o encontro que promove esse engajamento, corremos o risco de nos fecharmos em nós mesmos com os monstros que povoam nossas mentes. Isolado, sem diálogo, solitário, oprimido, o indivíduo adoece. E uma sociedade de indivíduos adoecidos, como creio que a nossa é, está enferma, promovendo isolamento e o silenciamento de todos os seus cidadãos por meio de práticas opressoras que se manifestam na família, no trabalho, nas instituições, na cultura, nas redes sociais. Em oposição a isso, as práticas educativas e organizativas que vivenciei na EJA e que vivencio na Associação Amanu visam sempre o diálogo, o respeito aos diversos saberes, o acolhimento ao diferente, a abertura ao novo e a construção coletiva do saber-fazer a transformação que queremos no mundo. Ao longo desse processo, construímos espaços permanentes de diálogo, uma feira da agricultura familiar agroecológica, um armazém, além de diversos projetos agroecológicos e educacionais que para além da busca por justiça socioambiental possibilitam o encontro, a conexão, a comunhão entre agricultores e agricultoras que não se comunicavam com esse foco, não conversavam sobre seus problemas comuns com o objetivo de planejar soluções. Com esses espaços e essas vivências coletivas nos transformamos uns aos outros de diversas formas, construímos ações em nosso município para solucionar nossos problemas, valorizamos mais nossos saberes e nossa cultura, e conhecemos a força política que nós temos em coletivo. Força que não sabíamos que possuíamos, que o medo e a insegurança não nos permitia experimentar. E foi no coletivo que cada um e cada uma de nós descobriu que a gente só se conhece plenamente em comunhão, em diálogo, partilhando saberes, cuidados, solidariedade. Há relatos diversos que mostram até a diminuição do uso de medicamentos controlados por parte das pessoas que se engajam em coletivos que têm uma causa comum, como por exemplo os relatos das Meninas de Sinhá*

Mas por qual motivo o engajamento social nos transforma tanto? Acredito que seja porque somos seres sociais e nos formamos nas interações uns com os outros, e as interações que promovem comunhão são marcantes. Porque ouvindo as histórias dos outros eu ressignifico a minha história. Porque estar em companhia de quem acolhe me desarma e diminui o estresse. Porque o calor humano me faz sentir pertencente, amado. Porque falando o que penso e sinto eu posso experimentar quem eu sou. Porque assim eu me humanizo e descubro a desumanização que a violência e a opressão provocam. São muitos os relatos que ouvi e li na EJA e nos movimentos populares de pessoas que manifestam o aumento de autoestima e coragem para expor seus pensamentos. São pessoas que muitas vezes vivem sufocadas pela rotina do dia a dia, pelas situações sociais desumanas, por crenças preconceituosas, ou pela indústria da comunicação ou redes sociais, e que descobrem o poder do diálogo, que pressupõe o encontro. Esse encontro tem sido perdido em nossa sociedade por diversos motivos. Seja a rotina exaustiva dos deslocamentos urbanos, as jornadas exaustivas de trabalho e estudo, as telas e redes de comunicação, que têm um grande poder de nos isolar, apesar de sua capacidade de nos conectar virtualmente e nos informar em tempo real. Precisamos nos conectar com nosso bairro, nossa comunidade, com o nosso território se quisermos que nossa sociedade seja saudável e promova saúde em toda forma de vida. Hoje, temos uma forte perspectiva neoliberal e opressora que polui toda a vida. Solo, água, sangue e leite materno estão poluídos. Precisamos urgentemente despoluir nossas mentes e nos lançar na transformação popular e agroecológica, o que só vai acontecer se nos encontrarmos para nos engajar em algo comum, que pode ser a dança, por que não? Assim como nossas mentes, nossos corpos estão enrijecidos pela monotonia do isolamento. Quando nos encontramos na luta popular sempre tem música e dança. E o encontro traz essa dimensão libertária da dança. Minha vida faz muito sentido quando danço com meus companheiros e companheiras pela nossa casa comum saudável e abundante!

E se derem vez ao morro, todo universo vai sambar” (Bráulio Tavares / Lenine)

*https://meninasdesinha.org.br/

Ps.: Para o leitor que não tiver familiaridade com o tema, eu sugiro pesquisar os relatos das mulheres que compõem o grupo Meninas de Sinhá e os textos de Paulo Freire, em especial, Educação como prática da liberdade.

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