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Feiras: Cultura, Memória e Resistência

Na coluna do mês de julho, Luna Pesce, empreendedora da Jornada da Mata, tece um relato fecundo sobre o papel de conexão e resistências das feiras, bem como suas memórias que fazem desse espaço uma extensão de sua família

O território da feira é um lugar sagrado nas tradições de matriz africana, pois é o lugar de Exu. Ele é o Orixá do movimento, da circularidade, é o mensageiro, a divindade dos caminhos e das encruzilhadas. Exu está na feira, está presente em tudo que ela pode representar, as boas trocas, a circulação do dinheiro, o “toma lá, da cá”, a correria e a comunicação, fundamental para que os negócios aconteçam. As feiras livres representam a resistência de uma forma de comércio avessa às práticas capitalistas vigentes e é aí que entra a perspicácia e a malandragem de Exu, dando vida a esses espaços que conseguem legitimar outras formas de negociar, onde as trocas podem ser justas e em benefício de um coletivo. Eu, como mulher de Axé, vejo o sagrado em tudo que nos cerca, pois não estamos separados da natureza e, por isso, eu não poderia falar de feiras sem antes falar de Exu, pedir Agô e reverenciar a esta energia: Laroyê, Exu

A primeira memória que eu tenho de uma feira vem da infância, era uma feirinha de artesanato montada em uma praça, em alguma cidade de praia. Eu era pequena, devia ter uns 6 ou 7 anos, então, além do céu sobre a minha cabeça, estavam diversas barracas coloridas e, no ar, um cheiro de incenso misturado com muitos outros cheiros. Eu corria pela praça brincando com outras crianças e estava com a minha mãe. Nessa época, ela produzia colares de miçangas feitas com revistas antigas. Moldava o papel e depois cobria com verniz. Eu lembro das miçangas nitidamente como se fosse ontem. Eu usava no pescoço esses colares e estávamos cercadas de amigas. Eu vivia me perdendo e me achando pela praça e pela feira, e sempre tinha alguém atento para me mostrar a direção. Ali eu aprendi que feira é também família, além de tantas outras lindezas.

Até hoje, quando eu visito as feiras na minha memória, elas têm esse cheiro e essas cores, não importa se é no Maranhão, Rio Grande do Sul ou Rio de Janeiro: todas as feiras livres onde vou têm diversidade, cultura, alegria, arte, artesanato, criatividade e uma vida própria. Virou uma paixão minha, vejo cada feira como um retrato de um lugar, de um povo, onde se pode encontrar o que se gosta, consome, produz e tem orgulho. Onde estão os elementos regionais que compõem a singularidade e preciosidade de cada lugar. Tem a liberdade da produtora ou feirante, as conversas casuais e troca de informações, a xepa, os encontros, as surpresas, artistas de rua, a música que também é única, assim como as frutas e as comidas típicas. E tem a família, que se forma com trabalhadores e frequentadores assíduos. Mesmo que você vá a uma feira sem a pretensão de comprar alimentos, com certeza, você sairá de lá alimentada de muitas outras coisas.

Hoje eu tenho a sorte de vivenciar a tradicional “Feira da Glória”, que acontece na cidade do Rio de Janeiro aos Domingos, onde comercializo queijos vegetais artesanais que produzo e também alimentos agroecológicos de parceiras e parceiros. Nessa feira, além das verduras, antiguidades e artesanias diversas, de uns tempos pra cá, formou-se um polo gastronômico muito interessante, onde se encontram comidas típicas de vários lugares do Brasil e do mundo: Nigéria, Chile, México, Bahia, Pará e etc, atraindo pessoas que vão comer os pratos regionais para matar a saudade de sua terra natal e os curiosos que podem conhecer um pouco das diferentes culturas através da culinária.

Outra feira que tenho muito carinho é a FAE (Feira de Agricultores Ecologistas), que acontece aos sábados na cidade de Porto Alegre-RS, onde eu trabalhei durante a faculdade de biologia, e que ganhou para mim uma dimensão de escola. Ela é a primeira feira ecológica do Brasil, fundada em 1989. Por ela já passaram várias gerações e faz parte da sua história ser um espaço de encontro, de engajamento ecológico e articulação da sociedade civil em prol da sustentabilidade. Na FAE, as trocas transcendem o ato de compra e venda e atingem outras dimensões. A interação entre consumidoras/es e agricultoras/es favorece a aproximação entre o meio rural e urbano, proporcionando uma aprendizagem mútua com trocas de conhecimentos, afetos e percepções. A aquisição de um produto fruto da agricultura familiar de base ecológica é uma opção comprometida com as pessoas, natureza e com a saúde, visto que a produção destes alimentos não polui o meio, não envenena as pessoas, é biodiversa e gera renda a partir de alternativas de mercado mais justas. O/a consumidor/a possui um papel muito importante e, às vezes, ele/a mesmo se esquece de que o consumo é um ato político.

Eu não estou de forma alguma querendo romantizar e nem invisibilizar os diversos problemas que as feiras enfrentam para existir e as/os feirantes para trabalhar. Ocupar as ruas com alimentação de qualidade e acessível, arte e cultura nunca foi fácil, mas por hoje eu escolhi falar das coisas boas da vida e da leveza que eu também encontro no meu trabalho, apesar de todos os esforços para continuar a ser uma produtora artesanal no mundo capitalista. Trouxe para a roda um pouco dos vários aspectos das feiras que atravessam a minha vida e, hoje, fazem parte do que eu sou e um convite também para vocês: Vamos mais à feira e menos ao supermercado?

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