Eu planejava escrever sobre “o que nos define”.
Quais são os significantes com os quais nos identificamos, que nos representam, nos definem.
Na evolução do texto, eu apresentaria como grande parte das pessoas se define a partir de significados relacionados ao mundo externo, que nossa autoidentificação passa pelo olhar do que imaginamos ou queremos que o outro tenha de nós. E terminaria com uma reflexão sobre buscar dentro de nós (e não fora) o que verdadeiramente nos representa.
Bom, esse texto vai ter que ficar para outra hora… No momento, não me sinto nada inspirada a escrever sobre outra coisa que não seja o incômodo que estou sentindo hoje, a sensação de ter perdido algo. E é sobre isso que venho aqui falar.
Tudo começou lá em Fevereiro, há 5 meses, quando vi a abertura de um processo seletivo para um determinado cargo na empresa que eu já trabalho. Um cargo bem bacana que às vezes é objeto de flerte nos meus desejos sem planos concretos.
Eis as etapas do processo seletivo: 1 – Análise curricular; 2 – Produção de texto ou apresentação de assunto a ser definido pelos organizadores da seleção; 3 – Entrevista com uma banca avaliadora. A cada etapa, várias pessoas seriam eliminadas, passando de uma etapa para outra os melhores classificados e terminando com a seleção de um vencedor.
Eu tinha algumas dúvidas sobre participar ou não dessa seleção. Sair do lugar de conforto e satisfação no meu cargo atual para tentar essa vaga numa outra área conhecida por ser estressante, desorganizada e até adoecedora, não me deixava muito animada. Além disso, eu teria menos flexibilidade para cuidar dos meus outros projetos profissionais. Mas, por outro lado, os desafios da nova posição, a remuneração, o status do cargo… Os meus olhos brilharam com isso. Já conseguia até fantasiar me apresentando como: Eu sou a Fernanda, do cargo X…
Ah, não ia fazer mal algum participar só para ver como me saia. Provavelmente, nem iria passar da primeira etapa, de análise dos currículos. Como era uma disputa nacional, provavelmente vários bambambans ficariam na minha frente. Beleza, sem riscos de passar, mas vou colocar meu nominho lá na lista de participantes. Vai ser bom para dar uma movimentada.
Uns dias depois… Olha, passei para a outra etapa. E passei bem. Jesus, cadê os bambambans???? Bom, não sei, mas sorri de satisfação. A próxima etapa, de produção de um texto sobre um assunto técnico, me empolgou. Não fazia isso há anos. E mesmo já supondo das pouquíssimas chances de ser a pessoa selecionada, estava animada por me submeter novamente a esse tipo de frio na barriga e exposição. A empolgação durou umas duas horinhas, quando uma colega veio me dizer que eu estava perdendo tempo em participar, pois “a vaga já tinha dona”. Uma colega dela, que eu não conhecia, mas que parece ser uma ótima profissional (depois fui pesquisar sobre ela e só ouvi maravilhas). Bom, achei justo que ela fosse a favorita, já que estava trabalhando próximo das pessoas que escolheriam o finalista e fazia um ótimo trabalho. O sorriso de satisfação que eu tive antes ficou meio amarelado. Mas não ia deixar de escrever meu texto, eu tinha um bom trabalho para apresentar. Inclusive, seria uma boa oportunidade de dar uma desenferrujada e dar as caras para o mundo de novo (já que o último processo seletivo que participei – e passei – foi há 10 anos). Textinho então escrito tipo pizza: metade empolgação, metade mozzarella.
Texto enviado. E… nada. Não saiu o resultado. De Fevereiro até este mês, nadica de nada, nenhuma informação. Outras seleções foram abertas e essa ficou lá no limbo. Bom, como essa não era para eu passar mesmo (a vaga já tinha dona, né?), não fiquei triste. Achei uma pena não saber a nota da minha produção, mas logo esqueci. Estava na minha vida, no trabalho cotidiano, os projetos pessoais caminhando em paralelo, quando recebo um email me convocando para a entrevista. O coração acelerou, talvez mais do que eu esperasse.
O que sinto é que a cada etapa dessa seleção, conforme a tal vaga chique foi ficando próxima, parecia não ser mais impossível que eu fosse a pessoa selecionada. Não seria eu, mas quem sabe, né?
Não me preocupei muito com a entrevista, porque normalmente me saio bem. E foi ótima mesmo. O tempo seria 20 minutos, mas foram 40 na realidade. As pessoas foram simpáticas, acolhedoras e terminei com a bunda toda suada na cadeira. Tudo certo e tranquilo. A pessoa que tinha mais peso na escolha do finalista me agradeceu, disse que já conhecia e gostava do meu trabalho, e que minha entrevista tinha sido excelente…
Meus colegas, que sabiam dessa entrevista, me disseram como eu era uma fortíssima candidata, que eu seria a finalista. Frases que me deram um pouquinho de irritação, na verdade. Porque eu já sabia de antemão que não seria eu, então… Eu dizia para eles: “Relaxem, não vai ser dessa vez. Mas está tudo bem, foi ótimo participar…” Mas será que não seria eu mesmo? Tinha ido tão bem… Me peguei reavaliando tudo o que disse na entrevista, procurando respostas que poderiam ter sido melhor elaboradas. As próximas 24 horas foram com isso na cabeça. Depois, passou.
Cinco dias depois, fui correr logo cedo ouvindo um podcast de planejamento de negócios. Só para esclarecer, eu não tenho uma empresa e nem pretendo ter (a não ser uma floricultura, ou um café, ou uma livraria… quem sabe, né?), mas gosto de ouvir esse podcast. E o entrevistado falou que, num momento em que estava planejando ampliar muito o seu negócio, e ele tinha potencial para isso, entendeu que não era isso que ele queria. Ele não queria abrir mão da qualidade de vida que tinha para escalar seu negócio ainda mais. Aí o apresentador levantou a questão: “onde mora a nossa vaidade? É ganhar X ou é poder escolher projetos, ter mais tempo. Eu vou me vangloriar de quê? Do meu faturamento ou da minha rotina maravilhosa?” E aí podemos mudar as palavras, em vez de “vaidade”, pensar: eu vou me orgulhar mais de quê?
30 minutos depois disso, em casa, tive uma pequena crise de ansiedade: Meu Deeeeeeeeus! O que eu fiz??? De repente, tive um medo terrível de ser escolhida para a vaga. Pensava: Eu amo a minha rotina, é importante para mim conseguir conciliar diferentes projetos profissionais, cuidar bem de mim mesma, da casa, da filha, das plantas, da cachorra… Eu já nem consigo fazer tudo que quero. E se eu passar nessa seleção??? Por conta de uma vaidade – me definir como ocupante de tal cargo – eu estava abrindo mão de uma parte de coisas das quais mais me orgulho. Rezei. Rezei, rezei para não ser a escolhida. Pegaria muito mal se eu fosse selecionada e declinasse do cargo. Eu estava feliz desse jeito, com um trabalho flexível que me permite tantas coisas importantes. Poderia ficar aqui por anooooos nesse cargo que já tenho, e estaria tudo bem mesmo (isso eu pensei naquele momento, porque no dia a dia mesmo não sinto isso tão fortemente). E num momento vaidoso vou lá e coloco tudo em risco…
Passei o dia angustiada com isso. Se antes não tinha chance de ser aprovada, agora parecia que a maior chance era essa, tamanho meu medo. Ficava olhando a todo instante o email, com medo de me mandarem uma mensagem pessoal. Até que vi ele lá. No meio da tarde. Um email comunicando o final da seleção e a pessoa escolhida.
Não, eu não fui a finalista. E nem foi aquela colega lá, a “dona da vaga”. Foi outra pessoa (O quê??? Como assim???).
Isso fez uma nova bagunça aqui dentro. Aí veio o sentimento de perda, de vergonha. Perder para a “dona da vaga” era aceitável, eu tinha essa desculpa para mim mesma. Mas para outra pessoa? Por que ela? O que ela tinha que faltava em nós? (Sim, eu estava muito solidária à dona da vaga também). E o final da tarde foi com esse sentimento de perda. Perda do status, do dinheiro, da fantasia, do impressionar os outros, dos desafios…
Até que cheguei em casa, levei a cachorra para brincar na rua, aguei as plantas, comprei uma comida gostosa para minha filha e eu jantarmos, li um pouco, arrumei algumas coisas de casa, separei a terra que iria dentro da minha mala para o Rio (entendedores entenderão) e resolvi escrever sobre essa perda.
O que perdi, na verdade, foi a inocência de achar que o que me define não passa pela vaidade… Seja ela qual for.