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Ciclos – Espaço – Amor – Semear

Na coluna do mês de março, Lucas Fixel, do Jornada da Mata, confessa suas lembranças, aprendizados e inspirações, a partir de um mosaico de quatro íntimos signifcados: ciclos, espaço, amor e semear

A vida são ciclos, uma espiral infinita. Cada curvatura se assemelha, mas é sempre um pouco diferente.
Por alguma razão, viajo muito e já morei em muitos lugares. É um padrão na minha vida. Minha mãe diz
que é coisa do meu Sol em Sagitário. Eu gosto do meu signo. O centauro me representa: a fusão entre
dois seres opostos reflete bem como me sinto.

Por conta de tanta mudança, existem muitos Lucas: o agrofloresteiro, o baterista, o bioconstrutor, o
sambista, o da calistenia, o da meditação, o da festa e o do mar. Os ventos me levam por muitas
encruzilhadas e, a cada uma, me transformo um pouco. Conheço um novo canto dentro de mim e
reconheço os antigos.

Em 2024, aceitei um trabalho na Índia. Já estou aqui há seis meses e, em dois, retorno ao Brasil. Vim
cheio de expectativas, ideias e romances. O vento sopra e, no balanço das ondas, encontro as brechas.
Nessas horas, lembro sempre da capoeiragem. A Índia não é mole, não, terra de muitos extremos, num
nível que eu nunca tinha visto.

Hoje, ao escrever este texto, sinto algo confuso dentro de mim: um misto de “Eu quero…” com a
tentativa de perceber para onde o vento sopra. Dá medo de sair e dá medo de voltar. A Índia agora é
familiar, já tenho meu canto e me acostumei com a vida aqui. Mas preciso voltar. E tenho saudade.

Porém, além das memórias lindas no Rio, carrego também muitos traumas de ser artista independente e
não herdeiro na cidade maravilhosa.

Lembrei do que minha mãe sempre me diz: “Filho, confia”.

Ciclos

Hoje, a arte que mais me interessa é a navegação. A vida seguirá mudando, o rio seguirá fluindo e eu
quero seguir navegando. Percebo que dentro de mim há processos inconscientes que jogam entre si, e a
forma como me apresento à vida influencia esse jogo interno.

Na terapia, aprendi a primeira lição da navegação: a observação.

Essa é a frase que mais ouço na terapia: “Observa. Vê como reverbera“. E de fato reverbera. Cada
movimento na água reverbera por todo o oceano. Observar cria novas perspectivas. Ao contrário de
reagir, observar abre espaço. E o espaço é raro hoje em dia, numa cultura da produtividade que quer
ocupar todos os vazios. Criar espaço é um ato transformador, seja para digerir um sentimento ou
compartilhar um conhecimento.

Esse foi meu primeiro desejo ao me juntar à minha amiga Luna Pesce para criar a Jornada da Mata,
parte da Rede Saúva Jataí: criar espaço para que a vida aconteça.

Espaço

A seguinte lição foi uma colaboração entre minha mãe e bell hooks: o amor.

Minha mãe sempre diz: “Filho é que nem passarinho, a gente cria pra voar”.

E bell hooks, em “Tudo sobre o Amor”, escreve que amar é nutrir o crescimento espiritual do outro. É ver
o outro voar e vibrar com isso. No dia a dia, aplico esses ensinamentos. É um trabalho profundo de
honestidade, porque antes de tudo fala de nós mesmos: do nosso amor próprio, de sermos justos
conosco.

Sobonfu Somé, em “Espírito da Intimidade”, fala da prática ancestral de sua comunidade de conversar
com o espírito e pedir guiança a ele. Faço minhas preces diariamente ao espírito e ao meu coração.

Esse processo pode ser lindo e revelador, mas também difícil. Ser honesto é um ato de amor. E amar dá
trabalho.

No geral, a sociedade entende o amor como um sentimento que surge e é indescritível. Mas concordo
com bell hooks: precisamos falar de amor, aprender a amar, praticar o amor. Amor é trabalho sem hora
pra acabar.

Amor

Agora, para fechar o bem bolado, veio uma última palavra: semear.

Cresci num sítio na zona rural de Nova Friburgo. Minha infância foi cercada por bichos – reais e
imaginários –, árvores, frutas e estrelas. Uma das coisas mais bonitas que minha mãe me ensinou foi
olhar o céu. Simples e profundo: ver as formas das nuvens, o brilho das estrelas, tentar furar a nuvem
com o olhar e imaginar os Ufos que passavam no breu da noite.

Momentos como esses, ajudar meu pai na horta, acordar com o canto dos galos e pedir ajuda ao vizinho
para carregar um móvel me ensinaram muito sobre ciclos. Mas, na época, eu nem percebia. O lindo de
ser criança é que a gente aprende brincando.

Anos depois, em 2011, fiz uma vivência de cultivo agroflorestal com Ernst Götsch, e ele me lembrou de
tudo que eu via na infância – só que de forma mais robusta, técnica, apaixonada e prática. A paixão de
Ernst pela floresta me tocou tanto que aquele ano foi inteiro dedicado à terra. Trabalhei como estagiário
no Sítio Diversitah com Patrícia e Gilberto, construí sistemas agroflorestais no quintal do meu pai e da
minha tia, aprendi a mexer com bambu e tantas outras coisas. Foi uma explosão de descobertas:
pulsantes, vivas, esperançosas. Como uma criança fascinada por algo novo.

A floresta me ensinou sobre ciclos e deu a pista de como aprender a remar. O Ernst soprou no meu
ouvido e eu fui vendo aos poucos, integrando com o que meus pais faziam na horta, com as histórias dos
meus avós, com as trocas entre colegas. Aos poucos, entendi: para semear, é preciso entender os
ciclos.
Os consórcios de espécies, a época do ano, as podas.

E isso vale para tudo. Vale para a terra, mas também para os nossos processos emocionais e espirituais.
Para os nossos relacionamentos e desejos.
Esse remédio serve pra tudo.

Semear

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