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Bronze Revirado

Na coluna do mês de outubro, Pablo Lobato, artista plástico e cineasta, relata sua pesquisa e criação artística sobre a presença negra nas tocatas dos sinos de igrejas brasileiras

Hoje eu escutei o último episódio do Projeto Querino, idealizado pelo jornalista Tiago Rogero. Com uma perspectiva afrocentrada, o podcast é capaz de nos fazer “entender como a História explica o Brasil de agora, sem medo de botar o dedo em feridas e de apontar responsabilidades”.

O nome do projeto é uma homenagem a Manuel Raimundo Querino (1851-1923), intelectual negro, abolicionista, jornalista e professor, autor do livro “O colono preto como fator da civilização brasileira”.

Soube que o podcast foi premiado como um dos melhores trabalhos jornalísticos em áudio de 2022. Faço votos que seja amplamente escutado entre nós!

Esta introdução, menos do que um desvio, além de convite para conhecerem Querino, é uma deixa para compartilhar com vocês parte do que eu ando fazendo em arte. Comento, a seguir, sobre alguns dos trabalhos que realizei e que me aproximaram do protagonismo africano e afrodescendente na formação de nossa cultura.

Apesar de não trabalhar a partir de temas, admiro as miradas afropindorâmicas, aprendo com as múltiplas infâncias, com a natureza, e gosto de estudar a respeito da formação humana.

Em 2007, eu fui convidado pela amiga Juliana Araújo a pesquisar e colaborar com o processo de registro do Toque dos Sinos no Iphan, hoje reconhecido como patrimônio imaterial nacional. Frequentei, durante três anos, diversas torres de igrejas de oito cidades de Minas Gerais. Num primeiro momento, motivado pela tarefa do registro e, depois, para realizar duas videoinstalações, Bronze Revirado e Travessias para Bronze, finalizadas em 2011.

Durante as visitas às torres, tive a alegria de ter ao meu lado o amigo artista, mestre percussionista, Djalma Correa, falecido em dezembro de 2022. Foi Djalma quem me apontou a presença negra nos modos de tocar sino no Brasil. Nesse sobe e desce pelas torres, com Djalma e Juliana, compreendi que a prática sineira, em algumas cidades do Brasil, é fruto de uma escola informal atravessada por memórias que remontam uma linguagem iniciada no século XVIII, ainda pouco conhecida até mesmo pelo próprio clérigo. Fiquei fascinado ao perceber a relevante e colonialmente silenciada presença negra na criação dos toques. Travessias para Bronze avança nesse sentido e eu gostaria de, num próximo texto, falar um pouco mais deste trabalho.

Sabemos que as atividades braçais, consideradas vergonhosas para os brancos, foram, no Brasil, durante séculos, trabalhos destinados aos escravizados. Assim, pessoas negras e mestiças eram encarregadas de subir as íngremes escadas rumo às torres das igrejas pra fazer o bronze soar. Torna-se, por isso, ainda mais provável, a hipótese de que os escravizados participaram da criação dos toques, muitos dos quais apresentam, ainda hoje, células rítmicas africanas.

A videoinstalação Bronze Revirado derivou, com liberdade, deste meu encontro com o universo dos sinos. No vídeo, vemos o toque Dobre Festivo sendo executado em uma torre de igreja da cidade de São João del Rey, em Minas Gerais. O sino, pesando cerca de uma tonelada, é impulsionado pelos corpos dos sineiros e, em velocidade crescente, gira sobre o próprio eixo durante alguns minutos.

Quando realizei esse trabalho, pensava nele como um corte a liberar sentidos. A partir de um acontecimento que muitas vezes é pensado apenas por seus aspectos sonoros, o vídeo nos dá a ver uma espécie de performance pagã entre sino e sineiros.

A videoinstalação faz parte de um conjunto de trabalhos que venho realizando, em diferentes meios, como respostas a situações dadas. Respostas guiadas pelos sentidos que os materiais e o contexto em questão já informam. Depois desses anos subindo em torres, acabei encontrando um bom lugar e um bom momento para a câmera. A escolha do quadro, a câmera fixa e o plano-sequência estão a serviço de uma certa densidade para a imagem, que conta também com o modo de instalação do vídeo no espaço expositivo.

Na imagem abaixo vemos o público no ambiente de uma das montagens de Bronze Revirado. O afunilamento do espaço rumo a projeção procura traduzir parte da experiência que vivi nos estreitos das torres.

Vista da instalação Bronze Revirado, KIT – Kunst Im Tunnel Dusseldorf, Alemanha, 2013

Despeço-me desse passeio pela coluna Saúva, agradecendo pelo convite e compartilhando três minutos de um trecho do vídeo que compõe a videoinstalação:

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