Durante a minha infância eu vivenciava uma espécie de indignação pelo que a realidade me mostrava. Lembro de cenas em família nas quais, escondida, chorava pelo que assistíamos no jornal. Sentia vergonha da família me ver nessa situação frente ao que todos achavam como “normal”: pessoas passando fome nas ruas, homens gritando na bolsa de valores, guerras aqui e acolá, desmatamentos, queimadas irregulares, lixo descontrolado, falta de aceso a serviços básicos e de oportunidades, governantes estúpidos, falta de humanidade, roubos, discriminação, desigualdade…
Como se tudo isso não fosse suficiente, um bombardeio de propagandas vendendo coisas e modos de ser que eu não conseguia desejar. E as que desejava, não poderia ter.”
Porém, uma propaganda sempre me chamava a atenção. Começava com vários golfinhos que nadavam pelo rio Amazonas (daquelas cenas maravilhosas que só o Amazonas pode nos presentear) e, a seguir, oferecia cadernos. Com o recurso da venda dos cadernos, apoiavam uma instituição que preservava uma espécie de golfinho rosa, única no mundo, que estava prestes a se extinguir vítima da falta de consciência ecológica.
Como os cadernos não eram tão caros, eu precisava e sempre adorei, cada vez que íamos no mercado eu fazia questão de pegar um como uma forma inocente de colaborar com o que acontecia e salvar esses golfinhos. Isso me trazia conforto.
Eu cresci e a minha consciência social também. Decidi encaminhar minha vida acadêmica e profissional para estudar teorias, paradigmas e autores que me ajudassem a entender o que acontecia no mundo que eu assistia e vivenciava, e como poder transformá-lo. Assim, começou minha estrada nas ciências sociais.
Esses anos de estudo e pesquisa revelaram, entre outras muitas coisas, que assistimos um mundo colonizado por uma estrutura de poder/saber que dita as normas sobre como nós, seres humanos e não humanos, devemos ser e estar no mundo. Entendi que todas essas desigualdades e exclusões eram inerentes ao sistema social, político, econômico e cultural, material e imaterial, que nos foi imposto. Este sistema, sutilmente, se instaura nas nossas vidas, mentes e corações dominando desde nossos territórios até o mais íntimo da nossa existência e isso tudo se torna “normal”. Ora, todos sabemos que nada disso é normal. Então, o que eu faria para lidar com essa normalidade?
Bem, foi assim que decidi me tornar subversiva. Declarei para mim mesma que não aceitaria nada disso que foi-me dito e imposto ontologicamente como “normal”.
Assim, encontrei o exercício da decolonialidade como uma ferramenta de ajuda para compreender que é possível conviver com essa estrutura de poder/saber imposta e transformá-la por dentro. Comecei a decolonizar meus espaços íntimos e sociais na procura pela liberdade.
Neste processo, minha arma revolucionária foi e é a Prática da Alegria: alegria entendida como a potência cada vez maior de um sujeito social expansivo. “O trabalho vivo deste sujeito é sua alegria, a afirmação da sua própria potência”. (O trabalho de Dionísio. Uma crítica da Forma-Estado. Michael Hardt e Antonio Negri, 2003, ED, Akar).
Na afirmação daquilo que é vital dentro de mim, me tornei mãe de quatro crianças. Quatro vezes reafirmei um mundo melhor para meus filhos e para as pessoas ao meu redor. Reformulei a vida diplomática por uma vida na natureza, comecei a avaliar aquilo que consumia: alimentos, relações, produtos de higiene, de limpeza, embalagens, falas, livros, pessoas, aparelhos tecnológicos.
Comecei a retirar aquilo que conscientemente estava indo contra da vida; a dar conta do meu lixo e a entender que nada é descartável, uma vez que não existe um fora.
Passei a compostar e, o que antes era sobra orgânica, agora vira terra. Decidi também desmedicalizar minhas práticas, acreditar no meu poder feminino. Tive meus filhos em casa, nossos remédios provém das plantas e dos alimentos, a nossa cura é a natureza.
Quando me senti interconectada de novo com todo o sistema ao meu redor (isso é um processo diário e não sempre tão simples), um fogo interno começou a me chamar para empreender alguma ação pelas e nas instituições que historicamente replicam o modo colonial de ser; então, me tornei educadora de crianças. Potencializei dois projetos de educação transformadora que hoje são referência em Paraty: o Jardim do Beija Flor e a Escola Comunitária Cirandas. Um pouco mais fortalecida, entrei junto com a comunidade do Jardim do Beija Flor na escola pública com uma rede de voluntariado, replicando ações transformadoras.
Nesse mergulho regenerativo, me encontrei com as Alegrias, um projeto político, social, econômico e transformador que tem como objetivo potencializar ações pelo viés da vida econômica, ressignificando o mundo do capital, agregando valor aos nossos intercâmbios de recursos, potencializando conexões e destacando o verdadeiro valor da vida em comum. A moeda complementar Alegrias é a clorofila desse projeto e ela, junto a outras moedas, uma forma de dizer é possível, sim, fazer frente a esse sistema capitalista devorador.
A Pratica da Alegria, então, me dá a coragem para acreditar que é possível viver na “anormalidade” e assim, junto a outros anormais, transformar e regenerar os espaços que nos acolhem na terra como seres humanos; respeitando plantas, animais e minerais, entendendo que somos todos interdependentes e conectados por uma força Dionisíaca que é a vida.
Produzir a vida e a liberdade tornou-se uma missão; e neste mundo pós Covid, a minha tendência é a compaixão por todos aqueles que partiram e pelas suas famílias; o cuidado de si e o cuidado do outro; a gratidão por uma vacina que nos dá esperança de abraçar de novo; a resiliência para os momentos desafiadores; a confiança no aqui e agora. E mais: potência para acreditar num mundo regenerativo, flores para cada ação diária que leva sorrisos; estabelecimento do poder da vida por cima das forças que tentam dominá-la e a celebração das conexões e todos os portais que se abrem para que, em parceria, possamos desenhar o mundo que sonhamos.