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A gente quer trans-bordar

A gente quer trans-bordarA vida de um ser tem uma duração e até uma cronologia. Podemos dizer com isso que a nossa vida, como habitantes da Terra, é finita. Entretanto, existe uma dimensão do finito que não se opõe ao infinito.

A vida de um ser tem uma duração e até uma cronologia. Podemos dizer com isso que a nossa vida, como habitantes da Terra, é finita. Entretanto, existe uma dimensão do finito que não se opõe ao infinito. Cada um traz em si a ancestralidade da Terra, modificada por sucessivas e ininterruptas metamorfoses, que se prolongam, migram e proliferam outras existências. A mutação não é um vírus contagioso que caiba a escolha de ser controlada por qualquer aparato tecno-político-farmacêutico, como medicamentos ou vacinas, mas é a condição de navegação do planeta e de seus tripulantes. Não é uma estrangeira, é constituinte. Ela desconhece limites de atuação, sejam eles físicos ou metafísicos, naturais ou culturais. Aliás, qualquer tentativa de constranger seu percurso em acomodações binárias torna-se frustrante, para não dizer risível.

A mutação é a única constância que atravessa o tempo de todos os seres, vivos ou não vivos, e não depende de uma vontade particular para se manifestar, ainda que possamos co-laborar para seu incremento.

Nesse sentido, o infinito convive, sem conflito ou mediação, na multiplicidade de finitos em trânsito. Dito de outra forma, o infinito aqui é a própria multiplicidade inoculada nos corpos – concretos ou abstratos – e que permite a diferenciação que nos coloca em movimento. 

Carregamos, portanto, um planeta íntimo enquanto nos deslocamos pela Terra, realizando metamorfoses pessoais, algumas mais tímidas outras disruptivas, ao mesmo tempo que contaminamos e somos contaminados pelas mutações que ocorrem nos planetas íntimos com os quais cruzamos, seja privadamente ou na esfera pública. Não somos simplesmente o vestígio de inúmeras transformações vividas pelo organismo Terra, herdeiros de uma experiência arcaica, um legado, mas sim a expressão do cosmo, ativistas potenciais da imensidão que podemos produzir e fazer transbordar. Esse é o convite que a vida nos faz: participar da criação contínua do infinito. 

A ação de trans-bordar tem, no mínimo, um duplo efeito: ultrapassar uma fronteira e tecer relações para além dela.

Não é um extravasamento, um rompimento de barreira, uma inundação. Trata-se de uma costura desmedida, sem contorno fixo, que estabelece conexões inusitadas pois se abre em pontas soltas. Um traçado sem fim, que se vale de pontos com nós, com interseções, encruzilhadas que diversificam os caminhos e ampliam as possibilidades de contato. Ser um transbordador significa se engajar ativamente na transformação em curso, sem perder o fio da meada. Implica em atravessar os espaços restritos, pluralizar as subjetividades e elaborar tecnologias de convivência.

Atualmente estamos confinados em regimes político-sócio-eco-culturais organizados por uma epistemologia patriarcal colonial que constrói uma prática discursiva normativa e gera externalidades. Somos a exibição das consequências do capitalismo: um mundo doente, especializado no livre consumo de produtos, territórios, corpos ou mesmo o conhecimento e o tempo, todos reduzidos a mercadorias. Devoramos nossa imensidão como se fosse um recurso adaptado a alta performance mecanizada de um latifúndio monocultor, que simula um “dentro” e um “fora”, para onde é descartado o “lixo” produzido (inclusive o tempo desperdiçado). Mas para um transbordador, farto de engolir goela abaixo essa mesmice, tem um prato cheio para inventar usos dissidentes desses ingredientes e afirmar outros modos de alimentar e ser alimentado. As balizas que esse sistema nos submete não são intransponíveis. Existem outros mundos para fiar. Pois sim, estamos em plena metamorfose, contaminados pela própria mutação que nos fará experimentar a radical multiplicidade da vida. 

Tempo de desabotoar certezas. Mesmo a terra firme se move, sabia? Não há como conter um transbordador. Porque a gente quer mu-dança!

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