Na ansiedade imposta de vir a ser, a gente vai esquecendo de viver, do que somos, de coexistir com nossa mãe Terra, de mergulhar nos seus ciclos repletos de uma sabedoria divina e ancestral.
O ser humano moderno passa boa parte do seu tempo olhando e pensando para frente. Ainda na barriga da mãe, a vida da criança já começa a ser planejada. Conforme essa criança chega e vai se desenvolvendo, são levantados indícios de suas possíveis aptidões e o que ela poderá ser profissionalmente. O que você vai ser quando crescer? Essa é uma pergunta que acompanha o caminho de crianças e adolescentes. Eu ouvi muito e tomei-a como referência.
Eu nasci em 1978, na cidade de São Paulo, em uma família de classe média. Primeira filha (e única), minha pequena célula familiar desmoronou quando eu tinha cerca de 3 anos. Eu e minha mãe fomos morar na casa de meus avós maternos. Era uma casa enorme pra mim e foi ali que cresci brincando sozinha e assistindo muita televisão, pois minha mãe não me deixava brincar na rua. Minha convivência com outras crianças se dava na escola e com meus primos. Dentro do espaço familiar, eu podia ser quem eu era. Mas para o resto do convívio social, que era basicamente a escola, eu vivia, confusamente, uma vida de aparências, como se minha família fosse muito feliz. Meus primos, um pouco mais velhos, eram minhas referências e eram incríveis: faziam esportes, artes, línguas e se destacavam em tudo. E, assim, eu fui criando um medo de fazer qualquer atividade coletiva, porque eu não me sentia capaz. Na minha cabecinha, imaginava que faria tudo errado e seria motivo de chacota. Mas eu precisava ser boa em alguma coisa, para ser alguém no futuro e, dessa forma, escolhi ser muito boa aluna. E fui!
Esse tumulto interno que eu vivia, e também externo, me levou a querer que o futuro chegasse logo. Eu fechava os olhos e pensava que, logo, logo, eu seria grande e tudo aquilo ficaria para trás… Ao redor dos 12 ou 13 anos, decidi o que iria ser quando crescesse: publicitária! Eu via tanta TV e amava as propagandas, além de adorar escrever e fazer qualquer tipo de arte visual. Minha mãe batalhou muito para que eu pudesse estudar em escolas particulares (caras e incapazes de perceber o que verdadeiramente se passa na vida de uma criança). Passar no vestibular era uma obrigação moral. Por isso, eu tracei um plano de “carreira estudantil” para cumprir o meu objetivo. Obstinada que sou, atingi minha meta passando no curso de Comunicação Social na USP. O engraçado é que logo no final do primeiro ano, descobri que publicidade (a especialização que escolhi) não tinha nada a ver comigo. Trabalhei na área do jornalismo e terminei a graduação mesmo assim, cumprindo o compromisso com a minha mãe. Não foi tão difícil, pois estudar na ECA-USP mudou minha visão, me libertou de muitos estigmas e me colocou dentro de um círculo de pessoas fantásticas com quem me relaciono até hoje. Mas, mesmo a faculdade pública nos levando a uma visão mais crítica de mundo, ela também funciona na lógica do mercado de trabalho, alimentando o “vir a ser”, que mal chega e já perde lugar para o próximo passo. De alguma forma, comecei a sentir que o meu lugar no futuro não era ali, na “selva de pedra” e nem naquele mercado.
Nesse ponto, aquela garotinha insegura, cheia de medos, tinha ficado pra trás. Acima de tudo, tinha, de uma forma ainda não consciente, se conectado fortemente com seus impulsos interiores. Assim, ouvindo uma voz interior gritante, eu fui embora de Sampa, no dia seguinte à apresentação de meu TCC, e fui morar na Ilha Grande. Eu sentia que precisava estar perto da natureza, aprender a natureza, já que eu não sabia distinguir nenhum pé de fruta. Contrariando a lógica do caminho do “O que você vai ser quando crescer?”, eu fui embora, com um diploma no bolso, alguns poucos reais e uma suíte alugada, sem ter a menor ideia, embora tivesse alguns sonhos, do que eu faria. O que eu sabia é que queria ser dona do meu tempo.
E o que eu fiz, ou melhor dizendo, o que eu fui? Vendedora de passeios de barco, marinheira auxiliar de convés, caseira de milionários, vendedora ambulante na praia, em Ilha Grande, Angra dos Reis. Me mudei pra Paraty, dessa vez com um companheiro, e continuei a jornada: vendedora ambulante de pães caseiros recheados, pães integrais, roupas indianas, dona (e faz tudo) de um disk pizza, “hippie” fazendo e vendendo brincos na praia, de maracatu e candombe, auxiliar e professora particular. Resolvi fazer uma segunda graduação, licenciatura em pedagogia e me tornei mãe (com outro companheiro com quem sigo até hoje). De repente, não tão consciente, eu também estava sonhando um futuro para o meu filho. E senti que eu precisava fazer algo importante, me destacar, porque, afinal de contas, eu era o quê? Foi aí que embarquei com um grupo de pessoas e gestei, pari e cuidei, junto com elas, dos primeiros anos da Escola Comunitária Cirandas. Logo, surgiram matérias na grande imprensa, entrevistas na televisão, muitas visitas para conhecer aquela escola diferente. Eu então me senti importante. Mas, não me sentia muito feliz. Estava estressada, minha vida pessoal ia mal. Parei tudo e me lembrei que eu queria ser dona do meu tempo”, “que queria aprender com a natureza”…
Na ansiedade imposta de vir a ser, a gente vai esquecendo de viver, do que somos, de coexistir com nossa mãe Terra, de mergulhar nos seus ciclos repletos de uma sabedoria divina e ancestral. E nem nos damos conta, porque estamos presas e presos a um modo de existir, ou melhor, de sub existir, que é mantido pelas instituições sociais. Entre elas, a que passamos grande e importante fase de nossa vida, a escola. Escola esta que é fundamentada na meritocracia, no “sucesso” pessoal e na aquisição de conhecimento acadêmico. Habilidades tão fundamentais para a continuidade de nossa existência, resiliência, trabalho e cuidado coletivo. Vivenciar o conhecimento a partir da natureza é raro dentro dos espaços formais da educação básica.
A pergunta tão repetida, “O que você vai ser?”, poderia ser substituída por, “O que eu sou?”, “Quem foram meus ancestrais?”, “O que eu sinto?”.
Revisitando minha trajetória, honro as escolhas que fiz e que me trouxeram aonde estou. O que me guiou foram a minha intuição, a resiliência e a espiritualidade – esta última herança valiosa de minha mãe. Seguindo minha intuição, reconhecendo que existem os ciclos de calmaria e tempestade, mergulhando cada vez mais no colo da Mãe Natureza e sentindo imensa gratidão, eu, parafraseando os Novos Baianos, “Vou mostrando como sou/E vou sendo como posso/Jogando meu corpo no mundo/Andando por todos os cantos/E pela lei natural dos encontros/Eu deixo e recebo um tanto/E passo aos olhos nus/Ou vestidos de lunetas/Passado, presente/Participo do mistério do planeta”.