Matéria publicada em 6 de maio de 2025.
Toda terça-feira, a Feira de Produtores Agroecológicos de Anápolis – APROAR recebe os alimentos agroecológicos produzidos no Instituto Arandu e o excedente desses alimentos são doados para o Hospital Psiquiátrico da cidade, unindo produtores rurais, pacientes em tratamento e moradores em situação de vulnerabilidade. As ações do Instituto Arandu, parceiro da Saúva e da Muda Outras Economias (moeda social), que incluem mutirões em chácaras e oficinas mensais, são um exemplo de como agricultura sustentável pode gerar impacto social. Em um país onde o agronegócio domina as políticas públicas, iniciativas como essa provam que é possível conciliar produção sustentável, saúde comunitária e economia solidária – tudo enquanto se regenera o solo e inclui quem foi marginalizado.
Alimento que cura: da Feira ao Hospital Psiquiátrico
“Além da feira agroecológica com preços acessíveis, criamos um sistema de retirada de alimentos pelos parceiros da Muda, já que a logística para entregar cestas em casas é complexa”, explica Mariana Dourado, uma das organizadoras. As sobras são doadas ao Hospital Psiquiátrico de Anápolis, garantindo comida fresca a pacientes. A iniciativa não para aí: mutirões em chácaras mobilizam voluntários, que recebem moedas sociais como remuneração e parte da produção colhida.

Moedas que transformam: do óleo medicinal à inclusão social
A Muda não serve apenas para comprar alimentos. Ela é usada como forma de pagamento em um projeto paralelo que oferece terapias com óleo de cannabis para pacientes encaminhados por assistentes sociais e consultas médicas a cinco pessoas em situação de vulnerabilidade, incluindo dependentes químicos e pessoas em situação de rua. “Temos rodas de conversa mensais abertas ao público, integrando a Soul Cannabis e a Saúva“, complementa Mariana.
Os próximos eventos do Instituto Arandu são:
- Final de maio: Oficina sobre abelhas nativas (meliponídeas);
- Junho: Seminário com intervenções culturais;
- Julho: “Roda dos Saberes” para troca de conhecimentos tradicionais.
Leia abaixo a entrevista de Gabriel de Deus (Chácara Suindara) ao Paulo Sérgio Pires, do Núcleo de Comunicação Cigarras . Gabriel é agricultor há 15 anos no Distrito Federal, ele fala sobre os desafios de produzir alimentos saudáveis, a resistência ao agronegócio e como a agrofloresta pode alimentar o futuro.
PAULO PIRES: Gabriel, entendi que você é produtor rural, agrofloresteiro e também trabalha com café especial. Seu café é cultivado em sistema agroflorestal?
GABRIEL DE DEUS: Sim, tudo na nossa produção é agroflorestal. Trabalho numa chácara de 8 hectares, sendo 4 hectares dedicados à agrofloresta. Estou lá há 15 anos com minha esposa e contamos com ajuda de voluntários e estudantes. Cultivamos café, frutas, mandioca, inhame, abóbora, quiabo e ervas medicinais – uma grande diversidade.
PAULO PIRES: Como é seu esquema de comercialização?
GABRIEL DE DEUS: Fornecemos para programas governamentais como PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e PNAE (alimentação escolar). O preço é bom, mas há uma burocracia: você precisa estar vinculado a uma associação. Recentemente, o governo passou a priorizar mulheres, indígenas, quilombolas e outros grupos. Como minha esposa não tinha carteira de agricultora, estamos transferindo o cadastro para ela (para agilizar a burocracia).

PAULO PIRES: Como começou sua trajetória?
GABRIEL DE DEUS: Em 2010 comecei a produzir profissionalmente. Na época, Brasília tinha apenas 30-40 produtores orgânicos; hoje são quase 200. Comecei vendendo frutas nas feiras orgânicas da cidade. O movimento agroflorestal aqui cresceu muito por influência de Ernst Götsch, que deu cursos na região em 2002/2003. Ernst é um pesquisador incrível, engenheiro genético que trabalhou para grandes empresas até pedir demissão quando começaram com transgênicos. Ele desenvolveu técnicas revolucionárias de agrofloresta e hoje trabalha até nos Emirados Árabes. Aqui no Brasil, seu trabalho inspirou muitos, incluindo a Fazenda da Toca, do ex-piloto Pedro Diniz.
PAULO PIRES: A agrofloresta é economicamente viável?
GABRIEL DE DEUS: É, mas o grande desafio é que não segue fórmulas prontas. Enquanto na monocultura se sabe exatamente quanto produz por hectare, na agrofloresta com cultivos consorciados (como milho com abóbora e feijão) ninguém faz essa conta. Falta organização política também – o Ministério da Agricultura é dominado pelo agronegócio.


PAULO PIRES: Quais os principais obstáculos?
GABRIEL DE DEUS: A transição cultural é difícil. Muitos agricultores não querem arriscar mudar o que já conhecem. Em 2014, um projeto financiou nossa associação, a Próspera, que em 2 anos reuniu 60 famílias interessadas em agrofloresta. Mas falta assistência técnica acessível – os consultores geralmente atendem só grandes propriedades.
PAULO PIRES: Como está o movimento hoje?
GABRIEL DE DEUS: Há avanços. Brasília hoje tem a maior concentração de CSAs (Comunidades que Sustentam a Agricultura) do mundo. Recebemos visitantes internacionais – ano passado tivemos 10 estrangeiros em casa, da Tailândia, Alemanha, Austrália… O consumidor também está mais consciente, buscando produtos sustentáveis.

PAULO PIRES: Uma mensagem final?
GABRIEL DE DEUS: A mudança começa aos poucos. Se um agricultor reduz de 1.000kg para 900kg de agrotóxico, já é vitória. Não precisa virar floresta de uma vez – pode começar aplicando princípios agroflorestais numa horta ou roça. O importante é avançar nessa transição.
“A burocracia privilegia quem usa veneno, mas nosso café cura a terra e as pessoas”.
Gabriel de Deus, agroflorestor da chácara suindara.