Topo

Nhemongarai

Apoio da Saúva a documentário sobre ritual Guarani fortalece a conexão da Rede com as causas indígenas e com a preservação da cultura tradicional.

Ativista por essência, a educadora e musicista Débora Saraiva tem como missão de vida o fortalecimento entre mulheres e a perpetuação de culturas tradicionais que se perdem com o tempo. Seja com tambor, caneta ou câmera, todos os instrumentos em suas mãos se tornam potência de transformação. Nos últimos anos, com o apoio da Saúva, ela tem conciliado o trabalho como professora de percussão, a faculdade de Sociologia, a liderança da coletiva de mulheres Mutuan e seu envolvimento com a produção do documentário Nhemongarai, que registra um importante ritual Guarani Mbya que corre risco de ser extinto.

Há muitos anos Débora já realizava um importante trabalho social na região de Paraty de maneira autônoma. O reconhecimento e apoio da Saúva tornou possível o seu acesso à universidade, onde iniciou seus estudos formais em Sociologia, aos 40 anos de idade. “Acho que nem a Saúva tem noção do que ela fez por mim. Eu sou musicista, autodidata em tudo. Vou ser a primeira mulher a fazer uma faculdade na minha família”, declara, orgulhosa. 

Débora Saraiva

O empreendimento social Mutuan é um dos seus trabalhos mais potentes. Estreado com apenas oito mulheres, hoje já conta com mais de 100 que se fortalecem como uma rede de apoio na região de Paraty (RJ), unindo diversas outras coletivas da região e exercendo uma função de formação sociocultural e artística. Além do corpo de baile, canto, teatro e percussão, a iniciativa também conta com feirinhas de trocas, grupos de mães e o “Alerta Mutuan”, que serve de segurança para mulheres que passam por perigos nas ruas de Paraty, região marcada por uma constante violência contra a mulher. “Chegam entre 10 e 15 denúncias na delegacia diariamente, é um número muito alto para uma cidade de 44 mil habitantes, e a gente sabe que ainda tem muito mais sem denúncia. Como somos uma comunidade grande, tem gente na cidade toda, então é só mandar a localização no grupo que logo chega alguém para socorrer”, explica Débora.

Em 2006, Débora morou em Berlim, na Alemanha, trabalhando por 10 anos como professora de música. Ao longo desse tempo, se encantou pelo audiovisual ao registrar as manifestações políticas dos movimentos dos trabalhadores autônomos. Após esse período no exterior, visitou a Aldeia Yawanawá na Amazônia, juntamente com a cineasta documentarista Kasia Mich, que conheceu na Alemanha. Desta amizade e parceria nasceu uma série de 6 DVDs sobre a história do povo, narrado pelo pajé Yawarani. “Esse desejo nasce de um registro antropológico, de salvaguarda de memória, e de um reencontro com minha própria história”, relata Débora. Seu pai é nascido na Ilha de Marajó, um povo ribeirinho do Pará, de onde não saiu até completar seus 13 anos, e sua avó materna é Guarani Mbya. 

Foto Sabrina Furno

Foi entrando em contato com sua ancestralidade que Débora conheceu a Aldeia Guarani Araponga, em Paraty, onde pôde conversar com os anciões Pajé Agostinho e Dona Marciana. Diante da provocação do educador Marley Verá Tupã, forte liderança da comunidade, foi inspirada a chegar mais perto e aprofundar na pesquisa do Nhemongarai, um ritual Guarani Mbya sagrado que celebra a conexão com a terra e a ancestralidade, realiza o batismo do milho e das crianças. Assim, Débora passou 5 anos convivendo na aldeia, entendendo a cerimônia, a língua, os costumes. Foi um longo processo até adquirir a confiança e intimidade da comunidade para, só então, em 2018 iniciar as filmagens, a pedido de Agostinho, aos 106 anos de idade: “Não tem mais casa de reza nas aldeias, não tem mais pajé, os jovens não sabem rezar, já estão todos contaminados, muito alcoolismo. Então ele falou: eu preciso que registrem isso aqui pra mim, porque eu preciso rodar com esse filme, precisamos passar nas aldeias.”

Foram dois longa-metragens filmados paralelamente, um documentário, Nhemongarai, com linguagem didática para o próprio povo Guarani Mbya, com intuito de rodar pelas aldeias, e o outro, Montanha, com menos falas, mais sensível e artístico, que merece uma atenção de distribuição para festivais. Após os filmes prontos, um novo projeto se inicia em 2025: “A força da semente”, fomentado pela Saúva. Inicialmente, o intuito era rodar as aldeias de Paraty e as escolas parceiras da rede Saúva exibindo o filme, mas o fomento acabou tendo um impacto maior. Os recursos viabilizaram a compra de equipamentos para as exibições, como projetor e caixa de som, além de comida para a aldeia e a reconstrução da casa de reza da Aldeia Yakã Porã. Também foi possível o nascimento da primeira produtora audiovisual composta por mulheres Caiçaras, que passou a registrar os encontros, criando uma espécie de pós-filme com as afluências da obra e o impacto nas aldeias. 

Foto Sabrina Furno

A realização do filme fortalece a conexão da Rede Saúva com as causas indígenas e neste caso, especialmente, com as aldeias de Paraty e com a ONG Conviver de Ubatuba. Diversas lideranças indígenas entraram em contato com interesse na projeção do filme em suas aldeias, entre elas, Ivanildes Yakâ Porã, de Ubatuba, uma das coordenadoras do Fórum de Comunidades Tradicionais de Paraty. “O povo Guarani Mbya é muito resiliente, muito forte. Foram os primeiros a receber os colonizadores, e até hoje eles não perderam a língua deles”, nos conta Débora Saraiva.

Foto Sabrina Furno

O primeiro encontro, realizado na Aldeia Guarani Araponga, ainda desencadeou em uma denúncia de abandono pela FUNAI: “Tá tudo caindo aos pedaços, não tem mais escola, não tem mais postinho, então a gente aproveitou a equipe e registrou tudo para denunciar”, conta Débora, pesarosa mas orgulhosa da potência do projeto. Os próximos espectadores serão da Aldeia de Sapucai, Paraty Mirim, Pataxó, que apesar de não serem Guarani Mbya, terão no filme um incentivo para registrarem seus próprios rituais e criarem obras de resgate e denúncia. A obra também será exibida nas escolas parceiras da Rede Saúva na região: Cirandas, Quintal Mágico, Casa João de Barro e Jardim do Beija Flor. Para 2026, o projeto pretende ampliar seu alcance, em diversas aldeias, nas outras iniciativas conectadas à Rede e nas escolas públicas; colocando em prática a lei que obriga a difusão da cultura afro indígena dentro do currículo. O projeto ainda pretende tentar a presença de lideranças Guarani Mbyas nesses encontros, trazendo um contato mais direto com os rezos e histórias do povo. “Eu to muito feliz, muito emocionada. Isso é um resgate da minha ancestralidade. Eu não pude fazer pela minha avó em vida, porque eu era muito criança ainda, mas estou fazendo hoje, com esse apoio, para as aldeias daqui. Eu tenho certeza que onde quer que ela esteja, ela está muito feliz”, comenta, realizada.

“Gostaria de agradecer aos meus companheiros de jornada: Kasia Mich, com quem compartilho a direção e os sonhos desse projeto; Daniel Corrêia, com quem dividi a direção de fotografia e realizou a montagem e direção dos filmes; à Thaís de Campos, que colaborou com a produção e finalização, ao Ponto de Cultura Mbya Arandy Porã; ao Marley Verá Tupã; à nossa equipe de registro da circulação do filme – Produtora Caiçara, Anna Maria Andrade; à todo povo Guarani Mbya; ao Sr. Augustinho, Dona Marciana e a proteção de Nhanderu Tenonde. Ha’evete!”

Débora Saraiva – Musicista, professora, cineasta e ativista da Rede Saúva

Matéria publicada em 9 de abril de 2025 / colaboradora: jornalista Luana Abreu

Compartilhar: