João Carlos Artigos, palhaço hacker, exú laboral e germinador de processos coletivos, viajou, entre julho e agosto de 2022, para conhecer os territórios onde atuam o Nêgo Bispo, no Quilombo Saco-Curtume (PI) e a professora Vanda Machado, no Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá (BA), um dos mais influentes do país, ambos Patrimônios Históricos Nacionais. A primeira parada foi em Salvador (BA), onde esteve com a professora, pesquisadora e historiadora Vanda Machado, e depois seguiu para São João do Piauí, na Serra da Capivara, para encontrar com o pensador, lavrador, ativista e quilombola Nêgo Bispo.
Foi num dos programas produzidos durante a fase mais aguda da pandemia que os integrantes da Muda, entre eles João Artigos, conheceram o quilombola Nêgo Bispo e a professora Vanda Machado, filha de Mãe Stella, uma das ialorixás do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. Foi “amor ao primeiro Alô”, conta João, num relacionamento que se firmou com “muito afeto, trocas e aprendizados”. E uma festa da lua cheia no Quilombo Saco-Curtume foi o mote da viagem para conhecer de perto o quilombo do Nêgo Bispo, e também uma oportunidade de conversar pessoalmente com sua “avó afetiva”, Vanda, em Salvador.
O primeiro encontro com o Nêgo Bispo e Vanda Machado aconteceu nos programas No pé do Berimbau e Tempos das mãos – e patas e folhas e asas e barbatanas e, da Muda, em plena pandemia. A identificação entre João e eles foi imediata e que criou um parentesco afetivo, ou como ele mesmo diz: “onde você escolhe, acolhe e é acolhido, nessa via de mão dupla”, conta o palhaço, pesquisador e ativista. O contato com Vanda Machado começou com um telefonema para a produção de um programa e “só de ouvir sua voz”, João ficou maravilhado e encantado. Depois, conta Artigos, foi uma questão de tempo para que se adotassem. O encontro em Salvador agora na viagem se deu um almoço com a professora: “Nós falamos um pouco do projeto pedagógico dela, que é dentro de um Terreiro, e eu falei sobre a ideia de um Quintal de Fabulações Insurgentes( que tem a ver com um processo de criação de um coletivo de aprendizagens, um espaço/tempo onde possamos nos encontrar, compartilhar e produzir conhecimentos ligados à vida)”, conta João. Essa ideia, que ele chama também de Quintal da Vida, é de um lugar que pode servir para estender roupa, para brincar, criar galinhas, festejar e plantar medicamentos utilizados no dia-a-dia como capim-limão, saião, boldo, erva-cidreira.
“(Quintal de Fabulações Insurgentes) É um espaço/tempo pra nos encontrarmos e compartilharmos esses procedimentos pra pensarmos uma performance sob a perspectiva afro-centrada, de uma cosmovisão negra ou afro-pindorâmica, e pensando que a arte é somente uma das dimensões da vida (…) não existe separação entre arte e vida, ciência e vida, tudo está junto”.
João Carlos Artigos – Rede Muda Outras Economias
João tem escrito e estruturado esses pensamentos, e trocado ideias com Vanda Araújo e Nêgo Bispo a respeito. No encontro com a historiadora, “regado a boa comida e alimento ao redor da mesa, a receita deliciosa não poderia ser diferente, vinda de uma mulher preta, bahiana e de axé”, conta Artigos, ela citou o seu livro “Prosa de Nagô – Educando pela Cultura”, que fala de um terreiro onde foi criada a primeira escola dentro de um Terreiro, inclusive reconhecida pelo MEC.

A conversa entre João e Vanda passou pela educação de Terreiro e a perspectiva de uma ensinança, da produção de conhecimentos ligada ao mundo das artes performáticas, das artes do corpo mas com uma cosmovisão preta, afrocentrada. “Esse Quintal/Escola está ligado à perspectiva de podermos viver, não só em relação à arte e à vida, mas um palhaço pode estar nesse espaço, um professor, um figurinista, político, todas pessoas que querem pensar na sua performance em relação à vida”, explica João. Essa perspectiva de aprendizado está ligada ao auto-conhecimento, e na visão do palhaço (uma das pesquisas de João), uma pessoa jamais será quem não é. “O palhaço está sempre em busca por um caminho inverso, de reconhecer as suas limitações, suas qualidades, de se reconhecer primeiro pra depois fazer o riso surgir daí. E com isso, poder compartilhar o seu lado mais íntimo com a plateia”, explica Artigos.
Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá
Muitos projetos socioeducativos e culturais tem sido realizados neste terreiro, um dos mais influentes do país, que possui 39 mil metros de área e fica localizado em São Gonçalo do Retiro, bairro de Salvador. O espaço contempla as casas dos Orixás, as residências de aproximadamente 35 famílias, a Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, a Casa do Alaká (espaço de artesanato), a sede da Sociedade Civil Cruz Santa do Axé Opô Afonjá, o espaço Carrapixo, a Biblioteca e o Centro Odé Kayodé e o Museu Ilê Ohun Lailai – “Casa das Coisas Antigas”.
A ialorixá fundadora do terreiro criou o Corpo de Obá, ou Ministros de Xangô, tradição só conservada na Bahia no Ilê Axé Opô Afonjá, cujos cargos são ocupados somente por amigos e protetores do terreiro. Nas últimas décadas, já passaram pelo ministério os escritores Jorge Amado e Antônio Olinto, os compositores Gilberto Gil e Dorival Caymmi, o artista plástico Carybé e os pesquisadores Vivaldo da Costa Lima e Muniz Sodré.

Quilombo Saco-Curtume (PI)
Esse Quilombo está localizado em São João do Piauí, sul do Piauí, na região da Serra da Capivara. O Nego Bispo é um articulador desse espaço e, como um tradutor, ele foi buscar um letramento para traduzir o mundo externo para os quilombolas, buscando sua manutenção e a postulação da terra.
Esta segunda parte do roteiro de viagem teve como mote um convite do Nêgo Bispo para a Festa da Lua Cheia no Quilombo Saco-Curtume, no Piauí. João e Bispo se conheceram por vídeo em dezembro de 2021 e João ficou encantado com as características de palhaço quilombola do Nêgo Bispo. Logo depois, foi a vez de mediar um encontro com Ailton Krenak, num evento da Muda, e desde então os dois não se desgrudaram mais.

No Saco-Curtume, existe um espaço chamado Roça de Quilombo, que tem como propósito a confluência e o envolvimento inspirados na cosmologia politeísta e afroquilombola. O Bispo, como articulador do movimento quilombola brasileiro, começou a fazer essa festa na lua cheia de julho, pra reunir amigos, estudiosos e pessoas de sua rede para conhecerem a vida do Quilombo. Essa festa está ganhando essa tradição de acontecer sempre na lua cheia de julho.
Esse encontro, com características bem familiares, reúne no máximo uma centena de pessoas vindas dos quilombos ao redor, de Teresina, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. “No último dia, eu me apresentei de palhaço e houve roda de capoeira.(…) Fizeram uma baita piscina (demandada pelas crianças após a titulação das terras), construída com pedras e barro, com a mesma água que depois irriga as plantações que estão abaixo. Mais um processo operado com essa lógica quilombola do Nêgo Bispo. Ficamos em volta da piscina, de um lugar de convivência, a cozinha e o bar”, conta João.

Os convidados ficaram abrigados nas casas dos moradores e foram recebidos pela comunidade que estava muito curiosa sobre todos e, por isso, João levou o seu palhaço para se apresentar. A dinâmica do encontro se deu em torno do espaço entre as casas e o quintal com o espaço de convivência, a piscina, a cozinha e o bar. Essa área está no topo da roça, da horta, de onde vieram a maior parte dos alimentos como o feijão, a carne de bode e a galinha, por exemplo. No próximo ano, a meta é que tudo o que irão comer saia do próprio Quilombo.
A região da reserva da Serra da Capivara é riquíssima culturalmente. Lá estão as pinturas rupestres mais antigas das Américas. No livro “O Elogio da Bobagem”, de Alice Viveiros de Castro, tem alguns dos registros de circo mais antigos das Américas, com pessoas jogando malabares e fazendo acrobacias, feitos há 8.000 anos.