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Sobre Saúde Mental e a Loucura – pela necessidade de aprender com a própria natureza

Na coluna de maio, Juliana Saúde Barreto tece um encontro imaginado entre Krenak e Freud enquanto sintetiza a história da luta antimanicomial no Brasil e nos convida ao mergulho à natureza curativa de nossa própria loucura

Primeiro pinte uma gaiola
 com a porta aberta.
 Depois pinte
 algo gracioso
 algo simples
 algo bonito
 algo útil
 para o pássaro.

Durante muito tempo um grupo restrito de pessoas via na inserção social uma possibilidade de cura. Sim, na psicose o delírio é uma tentativa de cura, é o que demarca Freud. Uma tentativa de estabelecer um laço social. Mas como pensar a cura de sujeitos que são, eles mesmos, considerados “a própria doença”, tal como aponta Freud?

Pensar a saúde mental nesta nossa época de um planeta colapsado (onde pessoas com ou sem um diagnóstico, sem ou não uma estrutura psicótica, sem ou não uma marca que o define como “diferente”) precisa cada vez mais se reconhecer no coletivo; na construção coletiva; uma aposta e uma saída. Digo de um coletivo que respeita e se constitui fazendo caber a diferença de cada um, sem a homogeneização que segrega os que são considerados diferentes. Ser antimanicomial é, cada vez mais, fazer caber esse “cada um”. Utopia ativa para alguns e atualizada a cada instante em que tentamos o mergulho de volta ao que consagra Krenak: “o futuro é ancestral”. 

Neste sentido, talvez poderíamos inverter a forma de pensar e entender o que é “a própria doença”, para dizer da cura do sujeito, repensar e considerar as formas e tentativas de laço social, já que estamos todos adoecidos. Permitir que a ótica delirante circule e opere para reinventar saídas é apostar na inventividade da loucura, como uma resposta ao formato que cada dia mais nos adoece. Entender que a atenção com a saúde mental diz respeito a um cuidado que independe de qualquer diagnóstico, perceber e “inventar” novas formas de experimentar esse cuidado, sem deixar de considerar toda importante contribuição da psiquiatria, tampouco se render à grande indústria farmacêutica chancelada por uma forma de existência capitalista que produz o que ela mesma se dispõe a tratar.

A palavra cura tem sua origem na palavra cuidado. E as formas de se cuidar são diversas, proporcionais às formas de existir. Se conhecer também é se cuidar, e isso nada tem a ver com tratar todos da mesma forma, ancora-se mais na lógica sustentada pelo último ensino de Lacan, do “todo mundo é louco “, ou seja, inventa um jeito próprio para falar e estar no mundo.

O que é coletivo se faz com o que é singular. É esse “cada um” com sua marca e sua forma de existir, sua história, sua singularidade que a partir do encontro se constrói coletivamente.

Em meu primeiro encontro com o Cacique e Pajé da etnia Yawanawá em visita ao Instituto Ouro Verde, ouvi em roda de conversa uma das frases que muito me marcou e mexeu com minha forma de pensar o cuidado em saúde mental. O Cacique Nixiwaká também conhecido como Bira deixa ecoar nessa roda a seguinte frase: “é preciso aprender com a sua própria natureza”. O que a princípio parecia uma colocação apenas sobre o cuidado com a floresta, com a natureza de nosso planeta, me faz perceber que vai para além disso, não deixando de contemplar as duas coisas, pois aprender a cuidar da própria natureza é conhecer e cuidar da própria saúde mental. Estamos em risco por não perceber o cuidado necessário com o que nos faz existir. 

É Krenak também que nos aponta a importância de “ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo.” Isso é cuidado e acolhimento em saúde mental. Essa afirmação me parece mais do que nunca reforçar o que nos aponta como saída o movimento da reforma psiquiátrica no Brasil. Entretanto, desta vez não há mais como pensar em apenas um grupo de pessoas. Estamos no mesmo barco.

Houve um tempo de exclusão, e uma restrição que se repete ainda hoje,  e nem sempre estava ligada a um diagnóstico, no hospital colônia de Barbacena, onde morreram 60 mil pessoas no que foi considerado o holocausto brasileiro: apenas 35% dos internos tinham um diagnóstico ligado a transtornos da saúde mental e sofrimento psíquico. A grande maioria das pessoas que estavam ali eram excluídas por questões outras, excluídas por uma lógica de organização perversa onde a hegemonia ditava essa forma manicomial de organização em sociedade.

Falar do movimento antimanicomial é também pensar ecologicamente, é sair da lógica do pensamento único, da monocultura, da vida construída em torno do capital, do não cuidado das diferentes formas de existência. Ser antimanicomial é apostar na convivência a partir e em função da troca entre as diferenças, com respeito às diferentes formas de existência humana. E ainda respeitar o sujeito, seu jeito, seus saberes, sua origem e sua singularidade, entender uma forma de tratar e acolher que contemple seu território, permitir e sustentar a decolonialidade sem negar qualquer contribuição.

A luta antimanicomial é um movimento que inicialmente defendia os direitos do sujeito em sofrimento mental e uma forma humanizada de tratamento em liberdade. Mas cada vez mais é a luta por tantos outros direitos diversos como dependência química, racismo, LGBTQIAPN+fobia, misoginia, capacitismo, entre tantas outras.

Voltemos a estar em roda ou seguiremos produzindo o adoecimento do planeta e, portanto, de nossos corpos. Como uma forma de sobrevivência e de preservação do planeta, resgatar a troca, a construção, o modo de existir convivendo em roda.

Em meu sonho quase secreto, imaginar como seria o encontro do Freud com Krenak.

Então encoste a tela a uma árvore
 em um jardim
 em um bosque
 ou em uma floresta.
 Esconda-se atrás da árvore
 sem falar
 sem se mover…
 Às vezes o pássaro aparece logo
 mas ele pode demorar muitos anos
 antes de se decidir.
 Não desanime.
 Espere.
 Espere durante anos, se for necessário.
 A rapidez ou a lentidão do pássaro
 não influi no bom resultado
 do quadro.

No final da década de 70, ainda com os resquícios do que sofreu no período pungente da ditadura militar, o país inicia a sua redemocratização, ao mesmo tempo em que surge o movimento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, e questiona os modelos tradicionais de assistência. Nasce assim a Luta Antimanicomial em defesa das pessoas em sofrimento mental. Movimento que confluiu com a construção do Sistema Único de Saúde. E culmina com a aprovação da Lei nº 10.216/2.001, nomeada “Lei Paulo Delgado”, que assegura a defesa dos direitos das pessoas com transtornos mentais e inaugurando o tratamento em liberdade e mais humanizado.

O Movimento da Luta Antimanicomial grita ainda hoje e sobretudo nos últimos anos, pelos direitos das pessoas com sofrimento mental, combate à ideia de que se deve isolar a pessoa com sofrimento mental em nome de tratamentos que não legitimam o sujeito, seus direitos, sua autonomia, sua subjetividade e sua liberdade.

A luta é não permitir o apagamento do sujeito e de seu direito a viver em sociedade da forma como é, além do direito a receber cuidado e tratamento sem abrir mão de sua autonomia, participando na escolha e formas de cuidado, sem que para isto tenham que abrir mão de seu lugar como cidadãos.

Após o fechamento do Hospital em Trieste na Itália, o que coincide com a promulgação da Lei Basaglia no país, Franco que é psiquiatra, símbolo da reforma por iniciar em Gorizia nova forma de pensar o tratamento psiquiátrico, vem ao Brasil.

Em 1987, dois marcos importantes para essa luta foram o Encontro dos Trabalhadores da Saúde Mental, em Bauru/SP, e a I Conferência Nacional de Saúde Mental, em Brasília. Com o lema “por uma sociedade sem manicômios”, diferentes categorias profissionais, associações de usuários e familiares, instituições acadêmicas, representações políticas e outros segmentos da sociedade questionam o modelo clássico de assistência centrado em internações em hospitais psiquiátricos, denunciam as graves violações aos direitos das pessoas com transtornos mentais e propõe a reorganização do modelo de atenção em saúde mental no Brasil a partir de serviços abertos, comunitários e territorializados, buscando a garantia da cidadania de usuários e familiares, historicamente discriminados e excluídos da sociedade. Quando se criou o dia 18 de maio, no Brasil, dia da Luta Antimanicomial.

A visita de Franco Basaglia ao Brasil teve muitos efeitos, denuncia e compara o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena com “um campo de concentração nazista”. Das denúncias e registros como no filme de Helvécio Ratton, “Em nome da razão”, o Brasil seguiu reinventando resistente apostando na nossa forma de fazer. Não sem os ecos de Nise da Silveira, a aposta na arte, na afetividade e na liberdade seguiram como luta e como possibilidade de reconstrução e reabilitação psicossocial de tantas pessoas que sofriam para além de transtornos mentais, sequelas dos “tratamentos” da colônia. Belo Horizonte é uma referência ainda hoje em saúde mental por apostar na arte e na convivência para a promoção da saúde, entendendo o trabalho dos Centros de Convivência dentro da rede pública de serviços substitutivos ao manicômio. Apesar de todo desmonte e desgaste que sofremos no governo dos anos de 2019 a 2022 no Brasil, seguimos resistência por um país democrático. O retrocesso não foi exclusivo para a saúde, mas sim um retrocesso político, não sem os efeitos e impactos nesse setor. E não falo apenas da Pandemia de COVID -19. O movimento da luta antimanicomial segue firme por direitos aos tratamentos humanizados em liberdade a que todo cidadão tem direito.

Quando o pássaro aparecer
 se ele o fizer
 observe no mais profundo silêncio
 até ele entrar na gaiola
 e quando ele assim agir
 delicadamente feche a porta com o pincel.
 Então,
 apague uma a uma todas as grades
 tomando cuidado para não tocar na plumagem do pássaro.
 Em seguida, pinte o retrato de uma árvore
 escolhendo o mais bonito de seus galhos
 para o pássaro.
 Pinte também a folhagem verde e o frescor do vento
 o dourado do sol
 e a algazarra das criaturas, na relva,
 sob o calor do verão.

Foi no ano de 2001,  durante um dos desfile do 18 de maio – dia da Luta Antimanicomial, eu, que carrego no nome e busco assinar no corpo a palavra Saúde, pude me encontrar com outros artistas, usuários da rede pública de saúde mental, familiares, trabalhadores da rede de atenção psicossocial de Minas Gerais em uma festa que alegrava a avenida acordando a cidade em um samba convite que apresentava o que pode ensinar a loucura.

Dali em diante foi um caminho sem volta, como atriz, como pesquisadora, como pedagoga, como brasileira que sabe o que é bom… da Companhia Momentânea de Teatro, criada no meu encontro com a rede pública de saúde mental de Belo Horizonte: como quem implementou as oficinas de teatro nos centros de convivência, segui assumindo os risos, os riscos, os delírios e deleites, as loucuras e invenções que tanto me ensinam e ocupam a cidade.

Nasce o Sapos e Afogados – Núcleo de Criação e Pesquisa em Arte e Saúde Mental que, hoje com seus 22 anos de existências, carrega em sua trajetória 8 espetáculos teatrais e diversas cenas breves, 3 curtas metragens, 3 residências artísticas, inúmeras performances, 2 livros publicados, além de oficinas e trabalhos na área da arte educação. 

Somos um coletivo ancorado em todos os princípios da luta antimanicomial que tem como missão fortalecer na pessoa com sofrimento mental a dignidade dos seus pensamentos e seu valor enquanto cidadão. O Grupo contribui culturalmente, intelectualmente e artisticamente para a sociedade, através de um trabalho que envolve uma visão de arte não complacente. Não se trata de normatizar a loucura para dialogar com ela.

O que nos motiva imensamente para a realização desse trabalho é a possibilidade de ampliar a discussão sobre a importância da arte e da cultura como direito universal, entendendo o teatro como ponto de elaboração e de elucubração da experiência desse sujeito. Nos trabalhos do Sapos e Afogados Núcleo de Criação e Pesquisa em Arte e Saúde Mental, sejam nos filmes ou nas montagens teatrais, o que presenciamos não é o delírio dos atores, mas sim um momento de puro estado de jogo cênico, em que é permitido tecer e brincar com metáforas delirantes travadas com o espaço, com o próprio corpo e com o outro.

O coletivo tem como missão ser um Espaço Criativo e Libertário de interseção entre arte e saúde mental. Deseja potencializar o trabalho dos atores, mantendo uma equipe estável, gerando renda a partir da produção do Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados sem perder com isso o caráter flexível do trabalho com arte e saúde mental. Busca ampliar seu repertório para outras linguagens, abrangendo com isso um maior número de pessoas beneficiadas pelo trabalho. Insistindo em multiplicar o Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados e sua filosofia, formando e expandindo nosso público.

Flamejamos nossa bandeira em sustentar, radicalizar, fomentar, criar, inventar o trabalho com arte e loucura abrindo novos territórios.

Difundindo nossa metodologia abrindo conexões e trocas com outras iniciativas que dialogam com a nossa experiência, divulgando nosso trabalho. Gerimos de forma compartilhada este coletivo, onde a visão dos atores é acolhida nos direcionamentos de cada processo sustentado em três eixos: Criação e Formação/Produção e Circulação/ Estabilização, Cuidados e Afetos.

Seguimos produzindo saúde e promovendo arte, seguimos construindo arte e promovendo saúde, não sem o que cabe na LouCura para além do que ela pode fazer sofrer.

E se você quiser saber mais, pode encontrar no livro “Submersa, 20 anos entre Sapos e Afogados” pela editora Javalí, com apoio da Saúva Jataí.

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