Foram duas professoras muito conectadas com a cultura popular, que também tocavam e faziam parte de grupos de Maracatu, que convidaram Débora Saraiva para participar da abertura da escola logo no início das atividades e começaram a trabalhar a iniciação musical através da cultura popular brasileira e músicas indígenas, com instrumentos regionais. As famílias também, naquela conjuntura, estavam muito envolvidas com a arte e a cultura, com cuidados com a alimentação, com o corpo, muito conectadas a essa filosofia de ensino. O trabalho com alfaias e tambores trouxe uma perspectiva diferente de muitas escolas que têm iniciação musical com flautas, violinos, fanfarras ou alguma coisa de orquestra, muito positiva também, segundo Débora, mas a Escola Cirandas nasceu com esse pilar de ter a cultura popular brasileira fazendo parte do cotidiano e da prática escolar.
“E veio a calhar com o que eu gosto de fazer, com o que está em meu coração e fui para a escola, porque desde que abriu já começamos com esse movimento e investimos nos tambores, muitos mestres e mestras também passaram pela escola. Mestres do Maranhão, a própria Dái e o Bruno que tinham aqui um Tambor de Crioula e faziam um batuque na sexta-feira à noite na escola. Então estava tudo muito integrado com a comunidade de Paraty, que também tem esse movimento de música e batuques muito bacana”, comenta Débora. Ela conta que o trabalho foi se estendendo, ampliando e foram misturando com outras referências trazidas pelas crianças e jovens, partindo desse princípio que elas conhecem suas raízes, conhecem o que tem de bom no local.
As aulas de música na escola sempre tiveram como tema de pesquisa a Ciranda de Paraty, o Jongo do Quilombo e a música que é tocada pelos Guarani Mbyá de Paraty Mirim, da Aldeia Guarani Araponga. Essa pesquisa gerou uma parceria com o Marley Verá Tupã, que oferece oficinas com essa temática, que canta e participa das aulas, misturando essas culturas.
Débora elenca que a pesquisa musical na escola é um trabalho de base muito importante por alguns aspectos, como o físico, o social e o cultural. No aspecto físico, trabalha-se a coordenação motora, o desenvolvimento do tônus da criança, o equilíbrio e a concentração. No lado social trabalha-se a questão de estar em grupo, de tocar junto, de ser uma atividade onde todos colaboram uns com os outros ou então o batuque não acontece. Nesse lugar todos são iguais, todos estão aprendendo, se existe uma pessoa que já toca há mais tempo, isso não é motivo para que uma criança ou um adulto que nunca tocaram se integrem ao grupo, peguem um instrumento e participem da cantoria.
“Nosso trabalho é de ritualizar, de criar ritos, de estar em comunhão, seja cantando, tocando, pegando referências populares, o boi, o maracatu, as cirandas”.
A Cultura Brasileira que gera nossa Identidade
Débora nos fala da importância do ensino de arte nas escolas e que a primeira coisa a se fazer é quebrar essa questão do que é o ensino formal e o que é a arte nesse contexto, porque, segundo ela, a arte está inserida na aprendizagem e no contexto do ensino. “Para além disso existe uma questão de identidade, de ações e políticas antirracistas, desse lugar da arte, e principalmente da arte popular e da cultura popular brasileira, nesse contexto acadêmico onde se diz que o “essencial” é o português, a matemática e a história como eles colocam nas apostilas”.
Para ela, a Arte trás o contexto da história viva, quando canta-se uma toada, quando conta-se a história de um mestre, quando um mestre vai à escola e conta sua caminhada, porque uma música é de um jeito ou aquela obra de arte é de outro, aquela escultura, tudo isso parte pra outras esferas de sensibilidade.
Ensino libertário
“Acho fundamental para a transformação da sociedade essa sensibilidade da arte e o poder que a arte tem de transmitir essa oralidade, de concretizar as coisas, é fundamental para esse tipo de ensino que estamos fazendo e querendo transformar. Porque a arte não pode estar ao lado como se fosse só um entretenimento ou uma coisa que não faz parte dessa escola formal, mesmo porque com a revolução tecnológica que estamos vivendo, muito mais do que a metade das profissões que olhamos hoje como engenheiros ou cirurgiões que muitos gostariam que seus filhos fossem, muito provavelmente daqui a 8 ou 10 anos talvez já não existam mais”, reflete Saraiva.
Débora faz uma crítica dessa visão de preparar os alunos desde cedo para o mercado de trabalho, que é concreto nos números e não tem sensibilidade. Segundo ela, essa visão está morta e já acabou, mas ainda vai demorar um tempo pras pessoas perceberem.
“Quando elas perceberem, se estudaram só isso, vão ter um problema ali na frente mas se tiveram uma educação libertadora, onde esse jovem e essa criança tenham contato com arte, possam se expressar através da arte, escrever, aprender a contextualizar o que ele sente, através de várias linguagens. Como eu disse, tanto através dessa linguagem raiz, de trazer os ritmos do maracatu e da ciranda, como da manifestação deles, de trazer o hip-hop, o rock, o funk”, alerta Saraiva.
“Arte é liberdade, é o coração que pulsa pra vida seguir, porque sem arte o que fica? Fica o fascismo, essa coisa que está tentando cortar isso”.
Débora Saraiva
Conhecer para aprender a valorizar
Débora lamenta que na escola pública hoje, não há mais a obrigatoriedade no ensino médio de ter música e filosofia, e que as escolas que estavam indo por um caminho alternativo ou diferenciado, acabam sendo compradas muitas vezes por grandes grupos de escolas, elitizando ainda mais esse tipo de ensino.
“A importância de termos a arte dentro da escola, no conteúdo, integrada a tudo, sendo eixo é a democratização do ensino realmente, se damos opção para a pessoa se formar e conhecer outras oportunidades, não se formar só para ser operário para estar no serviço, o que é uma profissão muito digna também, importante e relevante, mas dar escolha, mostrar um outro mundo”.
Débora Saraiva é educadora e percussionista com larga experiência artística e de pesquisa nas áreas do samba, da percussão e da cultura popular brasileira. Residiu por 9 anos em Berlim, onde apresentou-se nos principais clubes, casas de shows e festivais da Europa. Como percussionista e professora, já teve a oportunidade de se apresentar e ministrar aulas em diversos países e festivais do mundo, como México, Holanda, Itália, Brasil, França, Espanha e Inglaterra, entre outros. Atualmente tem uma pesquisa continuada junto à Escola Comunitária Cirandas em Paraty, onde fortalece o trabalho de resgate e expressão da Cultura Popular Brasileira através da música e dos ritmos das Cirandas, Auto do Boi, Maracatu e do Jongo.